Entro no barraco de tijolos sem reboco. Ele está deitado no sofá, ouvindo música no rádio. Sento-me ao seu lado
E aí, cara.
Ele sorri, estende as mãos
Meu maninho, até que enfim você aparece. Por onde tem andado.
Trabalho.
Eu sei, braço direito, homem de confiança, grande mano.
Continuo olhando para ele deitado ali no sofá, sorriso na cara, sincero. Está mesmo feliz de me ver. Magro, cara de quem o pó está comendo por dentro. Levanta-se, passa as mãos pelo meu ombro e me arrasta com ele.
Vamos para a cozinha
Você não vai embora sem tomar uma comigo. Depois não sei mais quando você aparece. O cara é meu amigo de infância, somos ali, carne e unha, aí ele cresce e toma outros rumos, o amigo na maior saudade.
Sentamos na mesa, ele pega uma garrafa na geladeira, pela porta aberta entra o ar da noite, escutamos o murmúrio de crianças correndo, brincando, na rua. Pela porta vemos os postes que se acendem
Meu mano, que saudade quando éramos assim, parece conversa de velho mas é verdade. Você não sente dessas saudades.
É, nos divertíamos muito, a gente até que era alegre, até feliz.
Que nem letra de samba. Minha mãe é que gostava de você cara. Tinha orgulho de você. Se visse você agora ficaria feliz.
Eu não apareci no seu enterro, não podia.
Grande homem de negócios.
Escancara seus dentes num sorriso largo. Vejo ele ali, é um pedaço da minha vida nos casos que ele relembra, grande memória dos tempos perdidos, coisas que já tinha esquecido, coisas que davam uma moleza triste na gente. As garrafas se amontoam na mesa, e ele lembra, lembra.
Abre uma gaveta e tira o pó. Abre o saquinho na mesa
Para o meu amigo do peito.
Não quero cara, tenho um serviço mais tarde, preciso estar limpo.
Me coloca na jogada, estou enrolado com umas coisas, preciso entrar numa boa para livrar a cara, me põe nessa, cara.
É claro.
Olha pela porta aberta e a noite passa. Agora é o silêncio, a calma superficial. Ele está sentado na minha frente, cochilando, chapado. Abre os olhos e sorri ao ver que ainda estou ali
Grande amigo.
Saco a pistola e aponto para ele, que se endireita na cadeira, olhos esbugalhados
Brinca não, maninho. Não gosto disso.
Caralho, cara. Porque foi aprontar aquela merda.
Não, espera aí. Você não. Somos camaradas, ele mandaram você por isso. Somos irmãos, eles querem me assustar. Me ajuda, você pode, você me tira dessa, acerto com eles, fico barra limpa de novo, nunca mais vacilo.
Sorri
Mandaram você para me assustar. Puxa, você é meu irmão, não faria isso com seu maninho de sangue, mandaram você porque sabem que você me tira dessa, irmão.
Cacete, até parece que você não sabe como as coisas funcionam.
Aperto o gatilho, ele cai de costas, derruba a cadeira. Vou até o corpo, queria dar um tiro só para acabar de vez, mas ele está ali, estrebuchando. Atiro na cabeça, ele para. Não dá para ver se sorri, se está de olho aberto, a cara é uma posta de sangue.
Saio, logo vai amanhecer. Caminho pelas ruas desertas, escutando o silêncio no latidos dos cães.
A vida é mesmo uma merda.
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